Sexta-feira, 9 de Junho de 2006
(26) AS PORTAS E A PORTA

Estranho amigo do peito aquele.
O Ricardo era assim.
Metido consigo, cozinhava as suas dores em lume brando e partilhava comigo o cozinhado.
Sofrimento e prazer, como sempre, tudo ao molho.
A olhar a bica e os pasteis de nata, filosofávamos sobre o aparente sem sentido do sentido da vida.
Filósofos de água a ferver, como ele dizia.
Naquele dia um lampejo de entusiasmo minava-lhe o semblante por regra sisudo. 
Espanto o meu, habituado que estava à sua fronha cerrada.
Logo confessou e descodificou.
Era para ele a vida um grande jogo.
O prémio assegurado: a morte !
O jogo era iniciado perto da grande arena. As regras, simples e fiáveis. Oferecidas eram imensas portas, correspondendo a outros tantos percursos. Concluído o percurso ou em qualquer passo do mesmo, podia o jogador regressar à arena e escolher nova porta, nova caminhada, sabido porém que uma delas era a última, a porta maior, a sem retorno.
Tão diferente e tão semelhante aos romanos jogos ali então em uso. Nestes a morte resultava de violência imediata que alguma força ou perícia podia apenas adiar.
No jogo do Ricardo, as dores e o sofrimento porventura estariam lá. Seriam contudo mitigados por uma ou outra centelha de felicidade emprestada de algum dos percursos.
Em confidencia me disse que andava nisto há muito, usara e abusara, impetuoso, sem hesitar na escolha, nem sequer temido ou desejado a porta grande.
Saira hoje do último percurso e decidira abrir outra.
Poucas restavam.
Após tanta caminhada, de sucesso e insucesso, de ganho e perca, de amor e ódio, gostaria de saber, dizia ele, qual delas era a porta grande.
Estava cansado. Apesar da pedra pisada fora privilegiado, vivera com intensidade e bebera de muitas fontes.
Não comentei tanta excitação e entusiasmo.            
Uma ligeira brisa trouxe o silencio, acompanhado de algumas estrelas. Aceitaram o convite para a nossa mesa. Entre todos, sem comentar, fomos trocando as nossas verdades.
Algum tempo depois o Ricardo, sem falar e com estrelas nos olhos, deu-me um abraço emotivo, beijou-me, e foi... 
Ele era assim.
Olhei, triste, os pastéis de nata que sobravam.
Sou guloso, comi-os.
Não tinham gosto, antes alguma amargura.
 O Ricardo não voltou mais...
                                                                                                           
 


publicado por solcar às 10:28
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Novembro 2006
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4

5
6
7
8
9
10
11

12
13
14
15
16
18

19
20
21
22
23
24
25

26
27
28
29
30


posts recentes

(39) O ADEUS À LUTA

(38) SOLIDÃO... QUE SOLID...

(37) O ECLIPSE

(36) A RECEITA

(35)CONVERSAS DE VIDA E M...

(34) OS SÁBIOS

(33) O LABIRINTO

(32) DIA DA DULCE

(31) MOSCA (II)

(30) SINAIS DOS TEMPOS

(29) MOSCAS

(28) DE CABEÇA PERDIDA (I...

(27) O TESTAMENTO

(26) AS PORTAS E A PORTA

(25) ROSA

(24) VOAR

(23) O COAXO

(22) A VERDADE NUA

(21) FOLHA MORTA

(19) A GARRAFA

(20) A BESTA

(18) MISSÃO IMPOSSIVEL

(17) AOS AMIGOS DO CORAÇÃ...

(16) SAUDADE

(15) A MASCARA

(8) 0 FOGO DA VIDA

(14) OS NUS

(13) FELICIDADE

(12) REPOUSO

(11) A LUTA

(10) DO CORAÇÃO

(9) OS OUTROS

(7) OS AMIGOS

(6) O ENCONTRO

(5) O SONHO

(4) SOU...

(3) OS ESPELHOS

(2) E O AMOR ?

(1) VERDADEIRA SOLIDÃO

arquivos

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

links
blogs SAPO
subscrever feeds